Crônica de uma
vida de Doris Azevedo
"Família
é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um
problema...Não é para qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às
vezes, dá até vontade de desistir...Mas a vida... sempre arruma um jeito de nos
entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de
cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida. Fulana
sai a mais inteligente de todas. Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e
comunicativo, unanimidade. Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes
do tempo. Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante. Aquele, o que
surpreendeu e foi morar longe. Ela, a mais apaixonada. A outra, a mais
consistente...Já estão aí? Todos? Ótimo. Agora, ponha o avental, pegue a tábua,
a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará
cheirando a alho e cebola. Não se envergonhe de chorar. Família é prato que
emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza. Primeiro
cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco. Mas, se misturadas
com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente
e nos parecem estranhas ao paladar tornam a família muito mais colorida,
interessante e saborosa. Atenção também com os pesos e as medidas. Uma pitada a
mais disso ou daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre. Família é prato
extremamente sensível. Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido.
Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional. Principalmente na hora
que se decide meter a colher. Saber meter a colher é verdadeira arte. Uma
grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a
colher na hora errada. O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da
família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe Família à Oswaldo Aranha;
Família à Rossini, Família à Belle Manière; Família ao Molho Pardo (em que o
sangue é fundamental para o preparo da iguaria). Família é afinidade, é à Moda
da Casa. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito. Há famílias
doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm
gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para
manter a linha. Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre
quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Enfim, receita de
família não se copia, se inventa. A gente vai aprendendo aos poucos,
improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro
ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel.
Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio
caduco como eu. O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem
graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que
experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas.
Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou
no barro.
Aproveite ao
máximo. Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete."
Trecho
do livro : Arroz de Palma”, primeiro romance a tratar da imigração portuguesa
para o Brasil no século XX, do dramaturgo e roteirista Francisco Azevedo, que
narra a saga de uma família em busca de um futuro melhor…
http://mydeco.com/photo/vintage-kitchen-brick-tiles/1492123/
Tenham um ótimo Domingo junto de sua família.
Anajá Schmitz